Uma reentré luminosa (com direitos laborais)
26 JUNHO 2020
De tudo o que é extraordinário neste ano, também a reentrée se afigura vir mais cedo. Muitas pequenas empresas e pequenos produtores ficaram totalmente parados entre março e abril, apenas para assistirem a uma avalanche de encomendas mal começou o desconfinamento. O produtor de peças esmaltadas com quem colaboro, neste momento só aceita encomendas a partir de setembro, após as férias de verão. Numa atividade semi-artesanal, onde a produção de cada peça não pode ser acelerada e tem de cumprir sempre o mesmo tempo de produção (preparação, pintura, secagem, cozedura), o limite de produção é menor, e por isso, exige tempo. O que demonstra que é uma atividade que não é compatível com os ritmos anormais de consumo que vivemos.
Isto exige-nos como consumidores, que estejamos mais predispostos a planear com tempo o que queremos realmente comprar, em vez de reagir a estímulos de consumo imediato. Se nas compras online, a ponderação na compra poderá ser maior, a informação que temos sobre o produto é menor e sempre incompleta, o que nos deveria predispor a reunir o máximo de informação possível e exigir um serviço de apoio ao cliente mais personalizado, e menos robotizado. E a dedicar tempo a cada ato de consumo, o que é, atualmente, um privilégio de muito poucos. A maioria das pessoas não tem um tempo de qualidade para dedicar a escolher o que consome, porque a voragem do ritmo trabalho-consumo é alucinante, porque é pressionada para fazer escolhas rápidas, porque está constantemente estimulada para o consumo, e tantas vezes, é apenas enquanto consumidor que se sente considerada socialmente. Que se sentia viva, como dizia uma senhora entrevistada por um canal de televisão, numa fila para uma das lojas de fast-fashion que reabriu recentemente numa grande superfície.
Se por um lado, é muito perigoso colocarmos o ónus das questões apenas em cima do consumo e do consumidor, deslocando o foco das estruturas que promovem o tipo de consumo atual, por outro lado não podemos não refletir sobre como todos estamos sob o jugo do consumo compulsório, no entanto, cada um de nós tem recursos absolutamente diferentes para o combater.
Quando começou o confinamento, uma das coisas mais estranhas para mim foi esta ideia de que a atividade mais importante a fazer fora de casa fosse ir ao supermercado. O facto de se tornar a prioridade número um, pareceu-me uma realidade paralela, bizarra. Talvez porque os supermercados franchisados são lugares onde evito ir o mais possível, e que me causam cada vez mais estranheza. Como nota o jornalista Vitor Belanciano: “Nestes meses reduziu-se os seres humanos à existência biológica, trabalho e alimentação. Agora a ideia é que temos de dinamizar o sistema socioeconómico e fazê-lo reverter a meses atrás.”
A propósito desta questão, vários eventos recentes têm-me feito perceber que a pausa que foi feita entre março e maio serviu apenas para concentrar a compulsão de consumo em cada um de nós — mas apenas aqueles que tiveram o privilégio do confinamento. Como se, fechados em casa, a única coisa que pudéssemos fazer era pensar no que íamos consumir mal pudéssemos sair de casa (ir ao restaurante, ir ao cabeleireiro, etc.) Em Portugal, por um lado, havia a ideia subjacente que queríamos cumprir um sentido de solidariedade para com “os trabalhadores do comércio”: os cabeleireiros, os empregados de mesa, cozinheiros e os empregados das lojas que haviam fechado, e toda a economia que depende da produção industrial, sector no qual centenas de “trabalhadores da indústria” eram despedidos ou colocados em lay-off a cada dia.
No entanto, a “onda solidária” não olhava para além da fumaça inicial. Os trabalhadores dos centros de distribuição alimentar a norte de Lisboa continuavam a ir trabalhar em comboios sobrelotados, como sabemos agora pelas últimas notícias sobre o tema. No início de Maio esta reportagem, recolhendo alguns testemunhos de trabalhadores, deixava muito claro as condições em que viajavam e trabalhavam centenas de pessoas. Houve também, durante o mês de Abril, a partilha de várias imagens nas redes sociais, de autocarros lotados às primeiras horas da manhã, com os chamados “trabalhadores essenciais”, na área metropolitana de Lisboa, antes das máscaras ou viseiras terem um uso obrigatório e serem de fácil acesso, como passaram a ser a partir de Maio. Estes são apenas alguns exemplos das desigualdades profundas que pudemos constatar durante os últimos meses, na forma como os vários profissionais “essenciais” foram considerados socialmente, e como, consoante o sítio onde cada um vive e o lugar que ocupa socialmente, essas desigualdades se sublinham, e a visibilidade dos seus problemas ora se torna mais clara, ora se torna mais obscura. Este artigo, que não possa deixar de recomendar, deixa muito claro este aspeto.
FILOSOFIA MANUFATURA
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Isto exige-nos como consumidores, que estejamos mais predispostos a planear com tempo o que queremos realmente comprar, em vez de reagir a estímulos de consumo imediato. Se nas compras online, a ponderação na compra poderá ser maior, a informação que temos sobre o produto é menor e sempre incompleta, o que nos deveria predispor a reunir o máximo de informação possível e exigir um serviço de apoio ao cliente mais personalizado, e menos robotizado. E a dedicar tempo a cada ato de consumo, o que é, atualmente, um privilégio de muito poucos. A maioria das pessoas não tem um tempo de qualidade para dedicar a escolher o que consome, porque a voragem do ritmo trabalho-consumo é alucinante, porque é pressionada para fazer escolhas rápidas, porque está constantemente estimulada para o consumo, e tantas vezes, é apenas enquanto consumidor que se sente considerada socialmente. Que se sentia viva, como dizia uma senhora entrevistada por um canal de televisão, numa fila para uma das lojas de fast-fashion que reabriu recentemente numa grande superfície.
Se por um lado, é muito perigoso colocarmos o ónus das questões apenas em cima do consumo e do consumidor, deslocando o foco das estruturas que promovem o tipo de consumo atual, por outro lado não podemos não refletir sobre como todos estamos sob o jugo do consumo compulsório, no entanto, cada um de nós tem recursos absolutamente diferentes para o combater.
Quando começou o confinamento, uma das coisas mais estranhas para mim foi esta ideia de que a atividade mais importante a fazer fora de casa fosse ir ao supermercado. O facto de se tornar a prioridade número um, pareceu-me uma realidade paralela, bizarra. Talvez porque os supermercados franchisados são lugares onde evito ir o mais possível, e que me causam cada vez mais estranheza. Como nota o jornalista Vitor Belanciano: “Nestes meses reduziu-se os seres humanos à existência biológica, trabalho e alimentação. Agora a ideia é que temos de dinamizar o sistema socioeconómico e fazê-lo reverter a meses atrás.”
A propósito desta questão, vários eventos recentes têm-me feito perceber que a pausa que foi feita entre março e maio serviu apenas para concentrar a compulsão de consumo em cada um de nós — mas apenas aqueles que tiveram o privilégio do confinamento. Como se, fechados em casa, a única coisa que pudéssemos fazer era pensar no que íamos consumir mal pudéssemos sair de casa (ir ao restaurante, ir ao cabeleireiro, etc.) Em Portugal, por um lado, havia a ideia subjacente que queríamos cumprir um sentido de solidariedade para com “os trabalhadores do comércio”: os cabeleireiros, os empregados de mesa, cozinheiros e os empregados das lojas que haviam fechado, e toda a economia que depende da produção industrial, sector no qual centenas de “trabalhadores da indústria” eram despedidos ou colocados em lay-off a cada dia.
No entanto, a “onda solidária” não olhava para além da fumaça inicial. Os trabalhadores dos centros de distribuição alimentar a norte de Lisboa continuavam a ir trabalhar em comboios sobrelotados, como sabemos agora pelas últimas notícias sobre o tema. No início de Maio esta reportagem, recolhendo alguns testemunhos de trabalhadores, deixava muito claro as condições em que viajavam e trabalhavam centenas de pessoas. Houve também, durante o mês de Abril, a partilha de várias imagens nas redes sociais, de autocarros lotados às primeiras horas da manhã, com os chamados “trabalhadores essenciais”, na área metropolitana de Lisboa, antes das máscaras ou viseiras terem um uso obrigatório e serem de fácil acesso, como passaram a ser a partir de Maio. Estes são apenas alguns exemplos das desigualdades profundas que pudemos constatar durante os últimos meses, na forma como os vários profissionais “essenciais” foram considerados socialmente, e como, consoante o sítio onde cada um vive e o lugar que ocupa socialmente, essas desigualdades se sublinham, e a visibilidade dos seus problemas ora se torna mais clara, ora se torna mais obscura. Este artigo, que não possa deixar de recomendar, deixa muito claro este aspeto.
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