Como desaparecem as árvores
9 OUTUBRO 2021
Há uns dias atrás senti que me tinham tirado o chão debaixo dos pés. Quando cheguei à escola onde costumo ir votar não reparei imediatamente nas mudanças, talvez fosse do frenesim que me acomete na hora de votar, que me deixa absorta, mas mal saí para o pátio de entrada da escola e procurei com os olhos a árvore que fotógrafo todas as vezes que a visito em dia de eleições, e reparei que tinha desaparecido. A árvore grande da escola, a árvore onde a escola se parecia sustentar, já não estava ali. Em vez dela, uma cobertura em chapa ondulada, desde a entrada e depois paralela ao edifício, ajudaria os alunos a chegarem menos molhados à escola em dias de chuva. Junto a esta estrutura dois conjuntos de mesa rodeadas de cadeiras fixas. Do outro lado, um parque de jogos fechado por uma grade alta parecia reduzir todo aquele espaço a muito pouco. O pavimento também parecia ter sido modificado. Em vez do alcatrão escuro que cobria aquele grande pátio, o espaço desenhava-se agora com grandes lajes de cimento, pintado de amarelo na zona da estrutura para jogos, onde se viam marcações a branco para diferentes modalidades.
Talvez tenha sido uma ingenuidade minha, coisas às quais me agarro por que me levam às imagens que guardo da minha infância. A minha escola primária, onde votei pela primeira vez aos 18 anos, tinha também uma grande árvore imponente, mesmo à entrada da escola, no pátio frontal. Essa árvore era uma alegoria das quatro estações, e um abrigo nos dias em que esperava que me viessem buscar à escola. Era um mastro. E quis ver nesta árvore, nesta escola, a mesma memória. Porque a fotografava a cada eleição chamava-lhe a árvore da democracia, mas queria imaginar crianças enérgicas a brincar diariamente à sua sombra, e a verem as estações desenhadas nos seus ramos. Talvez seja só esta memória que me tenha deixado tão desapontada com aquele desaparecimento, mas a verdade é que reparei sempre no desaparecimento das árvores de um lugar: se há novas árvores parece que sempre estiveram ali, mas quando são arrancadas de onde sempre estiveram, é como se me arrancassem uma parte do corpo. Um jardim despido, uma clareira recente, uma escola sem árvores.
Se calhar é um passo maior que a perna, mas creio que há espaço para algumas metáforas, das árvores à cidade, da escola à política (da polis). Na cidade onde vivo, tal como no pátio desta escola, têm arrancado muitas árvores e parece que vão arrancar mais (nem mesmo Serralves parece não resistir a esta compulsão construtora). Sim, são necessários serviços, transportes e habitação, mas o grosso desta compulsão por construir mais e destruir áreas verdes na cidade é largamente guiada por políticas que beneficiam apenas um grupo muito restrito de pessoas: investidores privados, unidades hoteleiras, imobiliárias e o mercado turístico da cidade. Se passamos anos a ver casas abandonadas na cidade, hoje essas casas estão a ser esventradas por dentro para fazer unidades de habitação que nunca serão acessíveis ao cidadão comum. A nova linha de metro, concentrada no centro da cidade, é incompreensível (como prioridade), quando as zonas suburbanas da cidade têm actualmente mais acessos por metro que as freguesias da cidade que ficam mais longe do centro (caso da zona ocidental da cidade, com graves falhas de mobilidade). As políticas permissivas do carro são um desincentivo à utilização de meios alternativos de mobilidade, como a bicicleta ou simplesmente andar a pé. As ruas pedonais são diabolizadas pelos comerciantes (ou pelas associações destes) e o estacionamento é escasso e caro. Os transportes, ao fim deste ano e meio, estão novamente cheios e em greves constantes, mas qualquer ideia sobre reduzir o tráfego dentro da cidade é mal visto. As políticas ambientais são nulas e o horror ao verde perpetua-se. Os jardins são modificados e impermeabilizados, com vantagens incertas do ponto de vista ambiental.
Em vez de avançarmos da casa de partida, parece que só recuamos em relação ao que se apresentava como prioritário há pouco mais de dois anos atrás: a emergência climática, a urgência habitacional, um novo paradigma para uma cidade com menos habitantes mas muitos mais visitantes que exigiria uma nova visão de mobilidade.
Enquanto as árvores vão sendo arrancadas para cada monte de cimento que nascerá aí, nesta suposta inevitabilidade de crescimento perpétuo das cidades, tal como a economia, que (alegadamente) definha quando pára de crescer — temos todos um papel acrescido como cidadãos: escrutinar estas ações, fazer perguntas, assinar petições, juntarmo-nos a grupos informais ou coletivos activistas, onde há mais informação e trabalho colaborativo para encontrar soluções. Se nos acomodarmos à ideia de que não podemos nada contra quem “manda”, que somos os Davids destes Golias, estamos a perder mais uma oportunidade de inverter o caminho errante da democracia. Participar é tanto um direito como uma obrigação, e pode passar por muitas formas diferentes, mas deve, sobretudo, deixar-nos alerta e atentos. Para que não acordemos em cidades feitas de betão, com trânsito interminável e sem transportes. Para que possamos replantar todas as árvores, de todas as escolas e jardins, que foram cortadas nesta voragem.
E na vossa cidade, as árvores continuam de pé?
AMBIENTE
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Talvez tenha sido uma ingenuidade minha, coisas às quais me agarro por que me levam às imagens que guardo da minha infância. A minha escola primária, onde votei pela primeira vez aos 18 anos, tinha também uma grande árvore imponente, mesmo à entrada da escola, no pátio frontal. Essa árvore era uma alegoria das quatro estações, e um abrigo nos dias em que esperava que me viessem buscar à escola. Era um mastro. E quis ver nesta árvore, nesta escola, a mesma memória. Porque a fotografava a cada eleição chamava-lhe a árvore da democracia, mas queria imaginar crianças enérgicas a brincar diariamente à sua sombra, e a verem as estações desenhadas nos seus ramos. Talvez seja só esta memória que me tenha deixado tão desapontada com aquele desaparecimento, mas a verdade é que reparei sempre no desaparecimento das árvores de um lugar: se há novas árvores parece que sempre estiveram ali, mas quando são arrancadas de onde sempre estiveram, é como se me arrancassem uma parte do corpo. Um jardim despido, uma clareira recente, uma escola sem árvores.
Se calhar é um passo maior que a perna, mas creio que há espaço para algumas metáforas, das árvores à cidade, da escola à política (da polis). Na cidade onde vivo, tal como no pátio desta escola, têm arrancado muitas árvores e parece que vão arrancar mais (nem mesmo Serralves parece não resistir a esta compulsão construtora). Sim, são necessários serviços, transportes e habitação, mas o grosso desta compulsão por construir mais e destruir áreas verdes na cidade é largamente guiada por políticas que beneficiam apenas um grupo muito restrito de pessoas: investidores privados, unidades hoteleiras, imobiliárias e o mercado turístico da cidade. Se passamos anos a ver casas abandonadas na cidade, hoje essas casas estão a ser esventradas por dentro para fazer unidades de habitação que nunca serão acessíveis ao cidadão comum. A nova linha de metro, concentrada no centro da cidade, é incompreensível (como prioridade), quando as zonas suburbanas da cidade têm actualmente mais acessos por metro que as freguesias da cidade que ficam mais longe do centro (caso da zona ocidental da cidade, com graves falhas de mobilidade). As políticas permissivas do carro são um desincentivo à utilização de meios alternativos de mobilidade, como a bicicleta ou simplesmente andar a pé. As ruas pedonais são diabolizadas pelos comerciantes (ou pelas associações destes) e o estacionamento é escasso e caro. Os transportes, ao fim deste ano e meio, estão novamente cheios e em greves constantes, mas qualquer ideia sobre reduzir o tráfego dentro da cidade é mal visto. As políticas ambientais são nulas e o horror ao verde perpetua-se. Os jardins são modificados e impermeabilizados, com vantagens incertas do ponto de vista ambiental.
Em vez de avançarmos da casa de partida, parece que só recuamos em relação ao que se apresentava como prioritário há pouco mais de dois anos atrás: a emergência climática, a urgência habitacional, um novo paradigma para uma cidade com menos habitantes mas muitos mais visitantes que exigiria uma nova visão de mobilidade.
Enquanto as árvores vão sendo arrancadas para cada monte de cimento que nascerá aí, nesta suposta inevitabilidade de crescimento perpétuo das cidades, tal como a economia, que (alegadamente) definha quando pára de crescer — temos todos um papel acrescido como cidadãos: escrutinar estas ações, fazer perguntas, assinar petições, juntarmo-nos a grupos informais ou coletivos activistas, onde há mais informação e trabalho colaborativo para encontrar soluções. Se nos acomodarmos à ideia de que não podemos nada contra quem “manda”, que somos os Davids destes Golias, estamos a perder mais uma oportunidade de inverter o caminho errante da democracia. Participar é tanto um direito como uma obrigação, e pode passar por muitas formas diferentes, mas deve, sobretudo, deixar-nos alerta e atentos. Para que não acordemos em cidades feitas de betão, com trânsito interminável e sem transportes. Para que possamos replantar todas as árvores, de todas as escolas e jardins, que foram cortadas nesta voragem.
E na vossa cidade, as árvores continuam de pé?
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